quarta-feira, 28 de novembro de 2012

ALDYR ROSENTHAL - Publicado em 04 de outubro de 2012




















Sou filho de um casal que se conheceu em um jogo de futebol, no campo do Pelotas. Meu pai é um apaixonado por futebol desde pequeno, lá em Jaguarão, quando ficava ouvindo os jogos do campeonato carioca pelas precárias ondas curtas do rádio. Minha mãe é capaz, até hoje, de acompanhar com o maior interesse a sofisticada transmissão em HD de um Galatasaray x Arsenal e, depois, me telefonar para comentar a respeito.

Tendo sido criado num ambiente em que o futebol sempre teve muito significado, natural que eu me tornasse um fanático pelo esporte. Para gente assim, o gosto pelo mundo da bola é meio caminho andado para a paixão pelo futebol de mesa (que, em princípio, é o futebol redimensionado).

Foi lá no final dos anos 60, que eu ganhei meus primeiros times de botão. Tenho ainda guardadas essas panelinhas, é claro. O Palmeiras do Baldochi, o Inter do Scala, o Flamengo do Onça, o Corinthians do Osvaldo Cunha, o Cruzeiro do Procópio e, obviamente, o Santos do Pelé (que, não sei por que, é amarelo). A eles logo adicionei uns botões de casacão conseguidos em Jaguarão com minha tia-avó (que era viúva de um alfaiate), tampinhas variadas e uns frankensteins, feitos de plástico derretido em medidas de Leite Ninho. Agreguei, em seguida, os primeiros puxadores de osso (dizia-se que feitos na Vila Scharlau), doados por um primo mais velho e por um ex-aluno do meu pai.

A vida era simples: enquanto meu irmão brincava com suas dezenas de miniaturas de cowboys e índios, reproduzindo diálogos cinematográficos e violentos tiroteios, eu, noutro canto, levava avante renhidos jogos de intermináveis campeonatos envolvendo meus quadros e meus craques. Às vezes me aventurava em disputas nas casas da gurizada da vizinhança, nas quais a regra e a bolinha variavam de acordo com a vontade do “mandante”. Já meus jogos com o pai eram realizados na escrivaninha do escritório lá de casa, contando com goleiras que vieram do Rio de Janeiro, com traves de madeira e redes de filó (muito superiores às de plástico que acompanhavam os times panelinhas). Um luxo!

Meu time, quando criança, era o Cruzeiro de Minas, provavelmente em função do pai “ser” o Cruzeiro de Porto Alegre. Acho, também, que minha simpatia pelo time mineiro se devia ao fato de que, na época, contava com um ataque mortal, no qual alinhavam Natal, Tostão, Evaldo, Dirceu Lopes e Hilton Chaves, figurinhas que se tornaram familiares para mim através de uma nova revista que estava nas bancas e eu passara a colecionar: a Placar. Ah, e pelos cromos do álbum Ídolos do Robertão.

Se, inicialmente, qualquer superfície mais ou menos plana (até mesmo o parquet do apartamento dos meus avós) servia de palco para meus embates, o primeiro “salto de qualidade” no meu jogo aconteceu quando, como presente de aniversário, ganhei uma mesa de eucatex. Para os padrões de então ela era enorme, cercada por moldura que impedia que os jogadores caíssem toda hora ao chão. Com o maior capricho, o pai fez a marcação das linhas do campo de jogo.

No início dos anos 70 os professores do Colégio Pelotense passaram a realizar, lá mesmo, um campeonato com rodadas a cada sábado, numa regra parecida com a Gaúcha. O pai, que era professor da escola, participou desses certames de coloridos puxadores. Eu ficava só “babando” na volta das duas mesas que havia, dando palpites e, claro, torcendo. O organizador desses campeonatos era o professor Calderipe, que jogava tão bem, mas tão bem, que tornava as disputas sem graça. Além disso, ele tinha caixas e mais caixas com botões (a maioria de osso) que eu enxergava como o maior dos tesouros. Passado esse tempo todo, ainda considero o Calderipe um dos maiores jogadores que já enfrentei ou vi jogar.

Em 1973, tal campeonato foi transferido do prédio do Pelotense para a própria casa do Calderipe. Com a possibilidade de inclusão de novos jogadores, não ligados à escola, fui (até que enfim) incluído no certame, assim como um outro cara, corintiano, que usava um bigodão e que tinha um time engraçado, grandão, todo preto (feito de Paladon)... liso embaixo. Era o José Bernardo Figueira. O Figueira contou para os novos parceiros, embasbacados, que tinha disputado um certo “Campeonato Estadual” em Canguçu, numa tal de “Regra Baiana”.

Não esqueço que, lá no Calderipe, meu Cruzeirinho de puxadores mesclados venceu o Corinthians do Figueira por 3x1. Na época eu pensei: “foi o jogo da minha vida!”.

Em 1975, o trio Schlee, Calderipe e Figueira inscreveu-se para a disputa (pelo CMD de Pelotas) do Campeonato Estadual que se realizaria em Jaguarão. Para tanto o pai adquiriu na Casa da Borracha um time azul e branco e outro todo preto, lisos, cada um com dez jogadores, um goleiro e uma ficha. Consta que eram de baquelite e confeccionados por Seu Aurélio, mestre baiano da arte de fazer botões. A preparação foi penosa, pois, evidentemente, botões lisos não deslizam a contento em mesa de eucatex! Tudo era muito difícil, desde assimilar-se a regra até mesmo conseguir a bolinha com a qual seria jogado o campeonato (um botãozinho, com dois furos e lados assimétricos, usado em cuecas samba-canção).

Para nós, o Estadual de Jaguarão foi um divisor de águas: ficou para trás o jogo de botão (com sua infantil precariedade), iniciando-se a fase definitiva do futebol de mesa. Foi bem por aí que passei a jogar com meu clube de coração, o Grêmio Esportivo Brasil.

A natural necessidade de organização – seguindo tendência que já se sentia em termos estadual e nacional – culminou em 31 de maio de 1975 com a fundação da Associação Pelotense de Futebol de Mesa. Como entre os dez sócios fundadores havia alguns funcionários do Banco do Brasil, nossa primeira “casa” foi um salão junto ao ginásio da AABB. No mesmo ano, no dia seguinte ao meu 15º aniversário, batendo o Figueira por 2x1 sagrei-me Campeão Pelotense (título que repetiria em 77, 78, 79, 80 e, depois, só em 1991).




















No ano seguinte, em 76, aconteceu meu batismo em certames de maior importância. Como “campeão pelotense” fui inscrito no Campeonato Brasileiro que a Liga Jaguarense sediaria. Impressionante como Jaguarão vivia o futebol de mesa. Era uma febre. Todos tinham times e a Liga vivia lotada de jogadores. Para aquele campeonato vieram ao sul vários consagrados jogadores nordestinos, como os baianos Jomar Moura, Oldemar Seixas, Roberto Dartanhã, Hosaná Sanches e Giovani Moscowitz e os sergipanos Átila Lisa, Antônio Oliveira e Jaiminho. Que orgulho experimentei, na cerimônia de abertura, ao ter meu nome sido apresentado junto aos deles! Depois, com a bola em jogo, sem que os adversários me dessem muita atenção, fui passando de fase e, surpreendentemente, cheguei à semifinal. Lamentavelmente deparei-me com um mito: Hosaná e seu América (que havia goleado os adversários anteriores). Não deu outra: 5x1 para o negão! Depois, na decisão do terceiro lugar, mais que satisfeito, voltei a ser derrotado, pelo Luis Felipe Figueira (que jogava por Canguçu), 3x2, de virada. Nada mal para um debut!


















Dizem as más línguas que naquela época ninguém jogava nada. Pura Maldade! Poucos são as testemunhas da qualidade técnica do pessoal de então, que enfrentava “campos embarrados” com botões lisos. Ah, e era praticamente só nós, da novata APFM (e o pessoal de Caxias), que nos atrevíamos a medir forças com os excelentes jogadores de Jaguarão e, logo, de Livramento, que sempre usaram times cavados. De lembrar que os jaguarenses e santanenses, especialmente, eram habilidosíssimos, dominando completamente a arte de fechar jogadas, de “fazer porco”. Ademais, a regra não previa, ainda, limite de jogadas fechadas entre botões! Experimente, caro leitor, jogar de lisos contra cavados! Experimente, amigo, jogar de lisos contra cavados e sem limite para abertura do “chiqueirinho”!

Quando se pega o gosto pela coisa, especialmente a partir de algum resultado expressivo, não tem mais jeito. Quer-se mais, viajar, jogar, conhecer gente, outros estilos, negociar times... Foi o que aconteceu comigo. Passei a ser assíduo participante, quase que ininterruptamente, por duas décadas, dos campeonatos oficiais dentro e fora do Rio Grande do Sul (grande parte dessas vezes acompanhado pelo Figueira, meu mentor técnico e conselheiro). Numa dessas, ambos, mais meu irmão, o Pierobom (monstro do jogo de lisos) e Renato Larrossa, viajamos um dia inteiro, em fusca locado, desde Ilhéus até Itapetinga, no interior da Bahia, para disputar um Brasileiro que, inusitadamente, não acabou. No caminho, sob sol abrasante, o carburador do “beatle” entupiu! E a gente, na beira da estrada, em pleno sertão, ainda achava engraçado!

























A lógica diz que quanto mais se tentar, mais chances de se conseguir alguma coisa. Como recompensa, de tanto jogar, em que pese frustrado na maioria, logrei vencer individualmente (quando não havia separação em “modalidades” ou “categorias”) três dos quatro torneios que, entendo, constituem o Grand Slam do futebol de mesa. Ganhei o Brasileiro de 1986 (realizado na minha cidade), o Estadual de 1993 (em Santa Vitória do Palmar) e a Taça RS de 1982 (em Porto Alegre). Nesses mesmos certames finalizei os Brasileiros de 1976 (em Jaguarão) e de 1987 (no Rio de Janeiro) em 4º lugar; os Estaduais de 1996 (em Livramento) em 3º e o de 1989 (em Rio Grande) em 4º; e a Taça RS de 1999 (em Pelotas/Academia) em 2º lugar. Somente não consegui o título do Centro-Sul Brasileiro (ou Sul Brasileiro apenas), mas cheguei próximo, com uma 2ª colocação (em Rio Grande) e uma 3ª posição em 1982 (no Rio de Janeiro). 



















Antes de ser rebatizada, a Taça RS era denominada “Torneio dos Campeões” (reunindo o campeão e o vice de cada uma das entidades que integravam a União de Ligas, precursora da FGFM). Uma das suas primeiras versões aconteceu em 1982, na então sede da Afumepa, em um conjunto de salas comerciais em plena Av.Independência. Na final, de time liso, enfrentava o Claudio Luis Schemes (outro dos maiores jogadores que conheci). O Claudinho tinha sido o único adversário para quem eu perdera na fase classificatória e estava me dando um novo banho de bola. Ele colocava a bola onde queria e o meu time não parava em campo. Fez logo 2x0 e eu já estava torcendo para que tudo acabasse logo quando, de repente, em um lance pela ponta-esquerda, ele chutou a gol para fazer o terceiro. Surpresa: a bola deu no peito do meu arqueiro Castañeda e caiu no pé do meia Alceu (15°, é bom que se diga!). Gol e 1x2 no placar. O jogo seguiu e logo surgiu nova chance para o adversário. De novo meu goleiro defendeu e lançou para o Alceu. Gol! 2x2. Como segurar o cara? Busquei na caixa o único botão cavado que fazia parte do meu elenco: o nº 13, Paulo Ferro (4 mm de altura e um baita senso de posicionamento em campo!). Final de jogo. Eu radiante, o Claudio desolado. Fomos para os pênaltis e o crime se consolidou. Xavante campeão!

No Brasileiro de 1996 joguei “em casa”. Como já tinha acontecido em 1980, a APFM foi a anfitriã. Com uma campanha muito boa e “correndo por fora”, cheguei às três últimas partidas, incluindo a final (contra o parceiro Roberto Larrossa) jogando pelo empate. Lembro-me que, antes do jogo das quartas, o Claudinho me alertou: “se tu não tomares mais gol daqui para frente, vais ganhar o campeonato”. Interessante que comecei as primeiras partidas jogando com três cavados e sete lisos. Conforme fui passando de fases, sentia a necessidade de aumentar minha capacidade defensiva, o que ficaria mais fácil com a inclusão de outros defensores cavados no meu time. Mas eu não tinha mais botões cavados além daqueles três que vinham atuando. Além disso, na manhã do domingo jogaria contra o carioca Antônio Carlos Martins (outra mito do nosso jogo), precisando com ele empatar (em oportunidade anterior, em 79, no Gigantinho, havia tomado 5x0 do “Tuninho”). Não tive dúvida: durante a madrugada transformei uns pedaços de acrílico branco em dois laterais cavados (Casca e Fernandinho), “torneados” em cima do joelho com um caco de vidro. Deu certo! A defesa se consolidou e ainda venci por 1x0 (gol do Paulo Ferro, meu centromédio baixinho e cavado).






















A ida ao Estadual de Santa Vitória, em 1993 foi uma festa, quase um convescote. Fomos em três carros e a Fernanda, com quem casaria em dezembro daquele ano, me acompanhou. Ela sempre me deu sorte! Não poderia ser diferente, acabei – com base na sólida defesa (que foi vazada somente uma vez, a bater), ganhando o título. Mais importante foi que nas quartas, na semifinal e na final, chutando de ficha, ganhei nos pênaltis do Guido, do Robson e do Betão. Prova de que milagres acontecem e de meu goleiro Mauro Caetano estava muito inspirado! Inesquecível a vibração do irmãozinho, Everson, que era o presidente da APFM na ocasião (e que, poucos anos depois, para nossa tristeza, acabou morrendo no intervalo de um jogo, na nossa sede).
























Nesses últimos 37 anos somente deixei de jogar “oficialmente” na segunda metade da década passada. Chequei a pensar numa aposentadoria definitiva, mas, aos pouquinhos, retomei o gosto que perdera temporariamente. Nada, hoje, é sacrifício, comparado ao que fazia em 85/86, quando trabalhava em Panambi, a 480 km de Pelotas e, todo sábado estava na APFM para os jogos do Campeonato Pelotense. Ou à fome de bola que repartia com o amigaço Sérgio Oliveira, ambos “longe de casa”, trabalhando em Arroio Grande e utilizando a hora do almoço para amistosos no apartamento em que ele morava.

O futebol de mesa volta a ser jogo de botão, vale a pena mesmo, quando se desfruta de uma parceria legal. Quando se joga com gente que se confunde com aqueles primeiros amigos, lá na infância, com quem se disputava partidas no chão mesmo, com quem se trocava e destrocava uma parelha de zagueiros de três camadas. Com quem se ri sempre, mesmo que as hilárias histórias sejam aquelas repetidas mil vezes.

Afora isso, não tem nada melhor do que chegar na casa do meu pai, no domingo, e ser recebido por ele com a mesma pergunta: “trouxeste teu time?”

Imagens
  
Fotos cortesia by Aldyr Rosenthal Schlee

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